No meio do conflituoso Complexo da Maré, um dos maiores agrupamentos de favelas do Rio de Janeiro, existe um espaço de acolhimento e conexão por meio da yoga. Lá, os moradores conseguem respirar, relaxar e encontrar ferramentas para lidar com a violência que enfrentam todos os dias. Este lugar é o Nubes, Núcleo de Bem-Estar e Saúde do Yoga na Maré, inaugurado em julho deste ano pela professora de yoga Ana Olívia Cardoso.
O que começou com uma turma de yoga para 20 pessoas em 2015 hoje envolve de 100 a 120 alunos regulares, divididos em quatro turmas. Com o Yoga na Maré, Ana Olívia oferece aulas gratuitas de yoga e sessões de massagem ayurvédica a preços populares para os moradores da região. Todo ano, ela também organiza retiros de yoga e meditação. E a cada dois meses acontecem os "aulões" abertos, tanto nas ruas da Maré quanto na Zona Sul.
O desejo de desenvolver um projeto na favela surgiu em 2010, quando Ana Olívia, que é portuguesa, veio para o Brasil pela primeira vez. Durante uma rápida passagem pelo Rio, ela conheceu a Rocinha e quis contribuir de alguma forma. "Sempre atuei na área social e senti a vontade de trabalhar em favelas. Então voltei para Espanha, onde morava na época, e comecei a pesquisar formas de vir para cá."
Em 2012, ela veio para dar aulas de espanhol em um programa piloto de uma ONG espanhola no Complexo da Maré. "Morei três meses em Parada de Lucas e bati na porta de muita gente, porque queria ficar mais. Dei aulas de espanhol pelo projeto e depois consegui emprego em outra ONG". Ao mesmo tempo, em 2013, ela começou a praticar yoga. "Foi tão bom que senti a vontade de levar esse conhecimento para a comunidade. Comecei minha formação e já montei a primeira turma de alunos".
Ensinamentos da yoga
Foi em um dos aulões na Zona Sul do Rio que Rosimere Gomes Viana, 58 anos, conseguiu finalmente ver o mar. Nascida e criada na Maré, ela teve problemas na visão durante a infância e diz que estava quase cega quando entrou para o Yoga na Maré, há cerca de 3 anos. "As coisas começaram a fluir na minha vida de uma maneira que até me emociono de lembrar. A minha cirurgia da vista que estava enrolada saiu e eu voltei a enxergar. Foi quando teve o passeio e eu vi o mar perfeitamente pela primeira vez."
Rosa, como é chamada pelos amigos, carrega marcas profundas das violências que sofreu ao longo dos anos. Na infância, foi agredida pelos pais. Depois, já adulta, foi vítima de violência doméstica em dois relacionamentos. Um dos ex-companheiros achou que estava sendo traído e quis se vingar. "Tenho nove pinos na perna esquerda, dois na mão direita e afundamento de crânio. Precisei fazer cirurgia, fiquei de cama por muito tempo, mas superei". Hoje ela diz querer "agarrar o mundo com as mãos". "Três anos atrás foi que eu comecei a viver. A yoga é a minha vida. Foi o que me curou e levantou a minha autoestima." A prática também transformou a vida de Caeta Pontes Lima Fonseca, de 49 anos.
Ela procurou o Yoga na Maré há 2 anos, quando precisou operar uma tendinite grave no ombro. "Tenho um filho autista hiperativo, o Miguel, de 12 anos, e sempre fiz muita contenção dele. Isso prejudicou meu tendão, então precisei fazer cirurgia, fisioterapia e reabilitação", conta.
Por indicação da cunhada, Caeta começou a frequentar as aulas e logo sentiu mudanças que foram além das questões físicas. "Já tive vários episódios graves de crise de ansiedade, síndrome do pânico, por conta de toda a situação que a gente vê e vivência na favela. Há 6 anos meu marido desapareceu e minha vida virou de cabeça para baixo."
Depois que começou a prática, ela diz estar mais calma e apta para administrar a ansiedade. "Quem tem crise sabe que a primeira coisa que falta é o ar. Com a yoga eu comecei a conseguir controlar a respiração em alguns episódios e momentos". A atividade ainda uniu a família, porque Caeta trouxe a filha mais velha, Miriam, que é universitária e tem 21 anos, e o mais novo, Miguel. "Ele faz tratamento desde os 4 anos e interage super bem, mas não para quieto. Nunca pensei que daria certo nas aulas, mas deu. Todo mundo acolheu e até a postura dele melhorou."
Maré de transformações
Ouvir histórias como as de Caetano e Rosa já virou rotina para Ana Olívia. "Muitos contam que conseguiram se acalmar em situações difíceis usando os exercícios respiratórios que ensinei. Das dramáticas, como tiroteios e operações policiais, até as mais rotineiras, como um exame de ressonância magnética". Ela acredita que a yoga é fundamental para viver realidades como a do Complexo da Maré. "Isso não significa estar meditando no meio do tiroteio, mas é a forma de digerir tudo isso, para não ficar doente", explica.
Junto com as aulas, a professora passou a trazer ensinamentos sobre sustentabilidade e hábitos saudáveis. "Sempre fazemos um café da manhã depois dos "aulões", então aos poucos fui inserindo o tema da alimentação saudável, do lixo zero. Sem impor nada, apenas dialogando e trazendo propostas". A Rosa, por exemplo, parou de fumar e de comer carne. "A yoga é como um grande guarda-chuva que trabalha transformações de vida e de hábitos, sempre incluindo a família e a comunidade, porque é um processo coletivo", diz Ana Olívia.
Atualmente, a iniciativa se mantém pelo trabalho voluntário de sua criadora e por diferentes fontes de financiamento. Além de receber doações, o projeto tem uma linha de produtos, que inclui almofadinhas para os olhos, camisetas, copos reutilizáveis, entre outros. Eles são vendidos pelo site e durante os eventos que o Yoga na Maré promove e participa. Os retiros já foram financiados por edital, doações e até financiamento coletivo.
Foi via crowdfunding que Ana Olívia arrecadou o dinheiro necessário para inaugurar o Núcleo de Bem-Estar e Saúde do Yoga na Maré. O pequeno apartamento com uma laje comunitária foi o primeiro passo para a realização de um sonho da professora: ter um grande espaço na Maré com diversas atividades voltadas para os moradores, de aulas de yoga a oficinas de alimentação saudável. O Nubes já conta com uma biblioteca composta por 100 livros, arrecadados durante uma campanha de doação no ano passado.
A última conquista é outro desejo antigo: formar professores de yoga, que também está se concretizando. Ela conta que firmou parceria com uma escola de yoga tradicional do Rio de Janeiro para proporcionar um curso de aprofundamento e formação. "Tem muitas pessoas interessadas, querendo estudar. Elas veem os benefícios da prática e querem passar adiante", diz Ana Olívia. Com a formação, ela espera que o Yoga na Maré possa ter uma equipe para crescer e oferecer mais aulas, da comunidade para a comunidade.
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